... Sacudido de um lado para o outro, o leitor precisa pensar adiante. Deixar de lado a preguiça do sofá em que jazem seu corpo e sua alma para que o espírito possa correr nas alturas, mesmo que seja para despencar no abismo da dúvida ou do sono. Não há um sol da verdade suprema para aquecer lagartos.
Não há justiça. Cada código é uma moralidade limitada que pretende ser absoluta... A justiça do Estado é a socialização da vingança pelo poder, a prepotência legalizada de uns sobre os outros, a vontade de poder instituída como direito de dominar e impor. A maior sinceridade obriga a reconhecer que se mente sempre. Alegam-se razões que não são as que efetivamente determinam as ações.
Flávio R. Kothe - Prefácio, Nietzsche, Marx, Freud. Fragmentos do Espólio, Julho de 1882 a inverno de 1883/1884.
... Só há uma explicação: Destino. Antes da gente nascer, alguém, sei lá quem, talvez Deus, Deus define direitinho como é que vai foder a sua vida. É isso. Era a minha teoria. Deus só pensa no homem quando tem que decidir como é que vai destruí-lo. Quando ele não tem tempo, faz uma guerra, um furacão e mata um monte, sem ter que pensar em nada. Em mim, ele pensou.
Aquele cara vai aprender a não sair por aí chamando os outros de veado, eu disse. Ele não te chamou de veado, chamou de gringo. É a mesma coisa. Veado e gringo são a mesma coisa. Também não sei de onde eu tirei isso. Fui para a praça, carregando minha espingarda dentro da caixa. Suel chegou logo depois. Estava desarmado, de mãos dadas com a namorada. Isso me encheu de coragem. Peguei a espingarda. Ajoelhei na posição de tiro. Pega tua arma, Suel. Ele falou que eu devia estar brincando, somos amigos, ele disse. Não éramos amigos porra nenhuma, mas eu poderia perfeitamente pegar esta deixa e encerrar o assunto.
Pega tua arma, insisti. Ele ria, não sabia se acreditava ou não. Suel queria mesmo desistir e isso me encheu de coragem. Olhei as pessoas na porta do bar do Tonhão, todos me observando, isso me encheu de coragem. Mirei. Se você quiser me matar, Máiquel, vai ter que ser pelas costas, ele disse. Suel ficou de costas para mim e saiu gingando, de mãos dadas com a namorada.
Pode atirar, ele gritava, me mate pelas costas. Dei o primeiro tiro, Suel voou no chão, deve ter morrido na hora. A namorada berrava e tentava arrastar o negro para o carro. Dei outro tiro sem mirar e acertei na cabeça de. Suel. Foi assim, as coisas aconteceram desse jeito. Ele foi a primeira pessoa que matei. Até isso acontecer, eu era apenas um garoto que vendia carros usados e torcia para o São Paulo Futebol Clube.
Patrícia Melo - O Matador. 2° edição – 2003, Editora Companhia das Letras.
L. Cycy.
L. Cycy.
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