segunda-feira, 13 de agosto de 2012

paRAPensar - Injustiça escancarada


paRAPensar - Injustiça Escancarada






Nunca o Judiciário brasileiro esteve tão exposto na mídia e na boca do povo. Quase todos os dias a mídia registra os conflitos entre instâncias, críticas internas e externas a membros da corporação, contradições de posições, decisões e sentenças. Até bate-boca entre ministros do Supremo Tribunal Federal são transmitidos ao vivo pela TV e circulam na Internet para delírio das torcidas, provocam mensagens e abaixo-assinados.

Tudo indica que a questão de fundo é uma só: o bloco monolítico do Poder Judiciário, historicamente a serviço das classes dominantes, não consegue mais atuar de forma monolítica. Por isso mesmo expõe suas contradições numa sociedade marcada pela desiguldade, sofre com as divergências intestinas e é alvo de outras instituições mais suscetíveis às exigências democráticas. Mesmo que se diga o óbvio, a crise é positiva, tem a ver com possíveis mudanças de adaptação a uma realidade que insiste em abandonar vícios do passado oligárquico. Apesar da disciplina hierárquica, florescem as correntes comprometidas com a utopia jurídica segundo a qual a lei e a Justiça devem ser aplicadas igualmente para todos, sem qualquer distinção. 

A mesma instituição utiliza pesos e medidas diferentes para julgar ricos e pobres. Aos pobres aplica a rigidez da punição – independentemente de ter os seus direitos assegurados. Aos ricos, em muitos casos, todo o aparato legal leva à impunidade. A opinião pública percebe que a injustiça é escancarada. 






A mesma instituição que concede habeas corpus a figuras como a proprietária da butique de luxo Daslu, que deve aos cofres públicos R$ 1 bilhão, deixa ladras de xampu e desodorante longos meses morando na cadeia:





Maria Aparecida evita olhar para sua imagem refetida no espelho. Faz sete anos que a jovem paulistana saiu da cadeia, mas, nem que quisesse, conseguiria esquecer o que sofreu durante um ano de detenção. Seu reflexo remonta ao ocorrido no Cadeião de Pinheiros, onde esteve presa após tentar furtar um xampu e um condicionador que, juntos, valiam 24 reais. Lá, Maria Aparecida de Matos pagou por seu “crime”: ficou cega do olho direito. Portadora de “retardo mental moderado”, a ex-empregada doméstica foi detida em flagrante em abril de 2004, quando tinha 23 anos. Na delegacia, não deixaram que telefonasse para a família. Foi mandada diretamente para a prisão, onde passou a dividir uma cela com outras 25 mulheres. Em surto, a jo-vem não dormia durante a noite, comia o que encontrava pelo chão, urinava na roupa. Passado algum tempo, para tentar encerrar um tumulto, a carceragem lançou uma bomba de gás lacrimogêneo na área das detentas. Uma delas resolveu jogar água no rosto de Maria Aparecida, e a mistura do gás como líquido fez com que seu olho fosse sendo queimado pouco a pouco. “Parecia que tinha um bicho me comendo lá dentro”, conta. A pedido das colegas de pavilhão, que não aguentavam mais os gritos de dor e os barulhos provocados pela moça, ela foi transferida para o “seguro”, onde ficam as presas ameaçadas de morte. Maria Aparecida passou a apanhar dia e noite. “Eu chorava muito de dor no olho, e elas começaram a me bater com cabo de vassoura”, relembra, emocionada. Somente quando compareceu à audiência do seu caso, sete meses depois de ter sido detida, sua transferência para a Casa de Custódia de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, foi autorizada. Lá, diagnosticaram que havia perdido a visão do olho direito. Foi nessa época que sua irmã procurou a Pastoral Carcerária, que a encaminhou para uma advogada que entrou com um pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo, que foi negado. Apelou, então, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, em maio de 2005, concedeu liberdade provisória à jovem, 13 meses depois de ter sido presa por causa de 24 reais. A advogada também entrou com um pedido de extinção da ação, baseando-se no “princípio da insignificância”, aplicado quando o valor do patrimônio furtado é tão baixo que não vale a pena a justiça dar con-tinuidade ao caso. No entanto, até hoje, o processo não foi julgado, e Maria Aparecida continua em liberdade provisória.

É um descaso muito grande. Já era para esse julgamento ter acontecido. Minha irmã pagou muito caro por esse xampu que não chegou a utilizar”, critica. “Tem gente que não precisa estar na cadeia. Existem penas alternativas e o caso dela não seria de prisão, mas sim de internação, já que desde os 14 anos ela toma medicação controlada”.

O mesmo recurso jurídico – o habeas corpus – pedido pela advogada para que Maria Aparecida respondesse ao processo em liberdade foi solicitado e concedido, em 24 horas, a outra mulher. Mas um “pouco” mais rica: a empresária e proprietária da butique de luxo Daslu, em São Paulo, condenada em primeira instância a uma pena de 94,5 anos de prisão. Três pelo crime de formação de quadrilha, 42 por descaminho consumado (importação fraudulenta de um produto lícito), 13,5 anos por descaminho tentado e mais 36 por falsidade ideológica. Somando impostos, multas e juros, a Justiça diz que a Daslu deve aos cofres públi-cos 1 bilhão de reais.



A diferença de tratamento dispensado a casos como o de Maria Aparecida e a dona da boutique acontece porque, embora na teoria a lei seja a mesma para todos, na prática, ela funciona de forma bem distinta para os representantes da elite e para os pobres. Entretanto, que não existe uma justiça para ricos e outra para as camadas mais humildes. “Ela é uma só, mas é aplicada diferentemente”. A questão do acesso à justiça no Brasil é histórica. “Sempre houve uma grande diferença de tratamento dos cidadãos de diferentes classes sociais pelas instituições judiciárias”. Ele explica que dentro do judiciário há distinções no andamento e e efetividade dos processos, que variam com a classe social dos envolvidos. Um dos maiores pro-blemas do poder é sua morosidade. No entanto, “isso não significa que os processos dos ricos são mais ágeis. Depende dos interesses e efeitos produzidos pelos processos”. Ou seja, a Justiça, quando interessa às classes dominantes, também pode ser lenta. Como exemplo, o “o longo tempo de uma execução para cobranças de dívidas de impostos, de contribuições previdenciárias”. Em relação a casos penais, isso também ocorre, “como quando uma pessoa com muitos recursos financeiros é acusada – Paulo Maluf, por exemplo. Nesse caso, ela é ca-paz de bloquear o andamento do processo até que a pena esteja prescrita. A agilidade em decidir a prisão ou soltura de uma pessoa também varia, de acordo com sua classe social”. A diferença é que “um acusado de classe menos favoreci-da não será capaz de usar as oportunidades permitidas pelo processo”.

Fonte: Revista Caros Amigos, com adaptações.

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