O esforço de reconstrução, melhor dito, de construção da democracia no Brasil ganhou ímpeto após o fim da ditadura militar, em 1985. Uma das marcas desse esforço é a voga que assumiu a palavra cidadania. Políticos, jornalistas, intelectuais, líderes sindicais, dirigentes de associações, simples cidadãos, todos a adotaram. A cidadania, literalmente, caiu na boca do povo. Mais ainda, ela substituiu o próprio povo na retórica política. Não se diz mais “o povo quer isto ou aquilo”, diz-se “a cidadania quer”. Cidadania virou gente. No auge do entusiasmo cívico, chamamos a Constituição de 1988 de Constituição Cidadã.
Havia ingenuidade no entusiasmo. Havia a crença de que a democratização das instituições traria rapidamente a felicidade nacional. Pensava-se que o fato de termos reconquistado o direito de eleger nossos prefeitos, governadores e presidente da República seria garantia de liberdade, de participação, de segurança, de desenvolvimento, de emprego, de justiça social. De liberdade, ele foi. A manifestação do pensamento é livre, a ação política e sindical é livre. De participação também. O direito do voto nunca foi tão difundido. Mas as coisas não caminharam tão bem em outras áreas. Pelo contrário. Já 15 anos passados desde o fim da ditadura, problemas centrais de nossa sociedade, como a violência urbana, o desemprego, o analfabetismo, a má qualidade da educação, a oferta inadequada dos serviços de saúde e saneamento, e as grandes desigualdades sociais e econômicas ou continuam sem solução, ou se agravam, ou, quando melhoram, é em ritmo muito lento. Em conseqüência, os próprios mecanismos e agentes do sistema democrático, como as eleições, os partidos, o Congresso, os políticos, se desgastam e perdem a confiança dos cidadãos.
A falta de perspectiva de melhoras importantes a curto prazo, inclusive por motivos que têm a ver com crescente dependência do país em relação à ordem econômica internacional, é fator inquietante, não apenas pelo sofrimento humano que representa de imediato como, a médio prazo, pela possível tentação que pode gerar de soluções que signifiquem retrocesso em conquistas já feitas. É importante, refletir sobre o problema da cidadania, sobre seu significado, sua evolução histórica e suas perspectivas. O fenômeno da cidadania é complexo e historicamente definido. O exercício de certos direitos, como a liberdade de pensamento e o voto, não gera automaticamente o gozo de outros, como a segurança e o emprego. O exercício do voto não garante a existência de governos atentos aos problemas básicos da população. Dito de outra maneira: a liberdade e a participação não levam automaticamente, ou rapidamente, à resolução de problemas sociais.
Os direitos civis garantem a vida em sociedade, se os direitos políticos garantem a participação no governo da sociedade, os direitos sociais garantem a participação na riqueza coletiva. Eles incluem o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, à aposentadoria. A garantia de sua vigência depende da existência de uma eficiente máquina administrativa do Poder Executivo. Em tese eles podem existir sem os direitos civis e certamente sem os direitos políticos. Podem mesmo ser usados em substituição aos direitos políticos. Mas, na ausência de direitos civis e políticos, seu conteúdo e alcance tendem a ser arbitrários. Os direitos sociais permitem às sociedades politicamente organizadas reduzir os excessos de desigualdade produzidos pelo capitalismo e garantir um mínimo de bem-estar para todos. A idéia central em que se baseiam é a da justiça social.
O enfrentamento dessa complexidade pode ajudar a identificar melhor as pedras no caminho da construção democrática.
Na época em que vivemos e por sermos jovens, mulheres e homens amantes da cultura Hip Hop, ainda pelo nosso dever de engajamento com as questões sociais, resta claro a necessidade de buscarmos um maior conhecimento sobre a história de nosso país, suas lutas sociais e suas conquistas, que geralmente são temas centrais nas letras de rap que ouvimos e nas atividades que este almeja alcançar.
Por: L. Cycy.
Referências:
José Murilo de Carvalho é autor de diversos livros, dentre os quais se destacam
Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi (1987) e A formação das almas: o imaginário da República no Brasil (1990), A construção da ordem e teatro de sombras (1996) e Pontos e bordados: escritos de história e política (1998). Ao longo de sua trajetória enquanto cientista político pela Universidade de Stanford, José Murilo tem demonstrado grande capacidade de analisar a história política do Brasil, sobretudo a partir do final do século XIX, já que seu foco é o advento da República entre nós.
Fonte: CARVALHO, J. M. de. Cidadania no Brasil, o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002, 7-13.